sábado, 20 de novembro de 2010

Não fiz de propósito

Lembro-me de ter 3 anos de idade, e de pedir uma Sega Mega Drive aos meus pais.
Lembro-me de estar com a minha avó em São Gemil, quando a recebi. Lembro-me que custou 42 contos.
Não me lembro do quanto os meus pais ganhavam nessa altura, mas eles lembram.
E, apesar de não o saber, não me esqueço de ter imaginado o esforço que terá sido para eles darem-me o presente do qual a minha mãe, desconfiada, me dizia "oh filho, mas tu tens a certeza que queres uma coisa dessas?"
Não, não fiz de propósito para me lembrar. Mas lembro.
Lembro-me da minha mãe a dizer que quem dava educação ao filho era ela, e se ela não me batia então mais ninguém podia fazê-lo. Para a seguir me castigar, se merecido fosse, mas bater não, que "porrada levou ela", eu não a levaria.
Do meu pai, nos curtos 3 kms de estrada que nos separavam da escola, a ter conversas comigo que eu só entendi já adolescente, anos - anos! - depois de acontecerem. Sempre como se eu fosse um adulto.
Lembro-me que não tinha prendas por passar de ano, porque passar de ano sempre foi a nossa obrigação; as prendas eram dadas porque se merecia, e quando havia dinheiro.
Não me lembro, mas não esqueço as histórias que ouvi de quando o meu pai começou a casa de onde vos escrevo, com 19 anos, dois anos antes de se casar (!), em conjunto com a minha mãe, aos sábados. E também não me esqueço de como ela almoçou maçãs com iogurte para ter dinheiro para o ferro da casa, para pagar a quem lho emprestou, até ao último cêntimo - na altura, centavo - do juro que até hoje não engoliu.
Ou de como eles me conceberam propositadamente na noite em que cumpriam o primeiro aniversário do seu casamento, seguindo as "regras dos livros" para que saísse rapaz.
Eu não fiz de propósito para me lembrar. Mas lembro-me.
Lembro-me da conversa que os meus pais tiveram comigo e com o meu irmão, eles, adultos, 36 e 33 anos, nós, adultos, 10 e 8 anos, de como nos explicaram que o dinheiro da nossa conta iria passar para a deles porque era preciso investir, de como todos teríamos um esforço a fazer nos anos seguintes e de como, quando a situação estivesse reposta, nos recompensariam.
Os meus pais aconselharam-se perante o investimento de uma vida, com os filhos, de 10 e 8 anos, dizendo-lhes claramente quais eram as medidas e as expectativas no curto e no longo prazo.
E cumpriram.
Eu não fiz de propósito para me lembrar disto. Mas como poderia eu esquecer?
Lembro-me de como a minha mãe me respondia sempre "pergunta ao teu pai", e de como o pai dizia "é melhor perguntares à mãe", e de como eu nunca dei valor a isso até saber o quanto um casal pode ser mais do que duas pessoas juntas.
"Se a tua mãe disse que sim, então sim". Algumas vezes, nem concordavam. Mas a palavra de um era a palavra do outro. E o que fala primeiro, fala pelos dois. E se algum não concorda, então a coisa resolve-se em surdina, dentro do quarto, sem nunca dar outra ideia aos filhos que não fosse a de uma Entidade, os Pais, formados por Pai e Mãe em perfeita harmonia.
Eu não tenho culpa que aos 5 anos soubesse o que era um testículo ou um ovário, porque a minha mãe me oferecera uma enciclopédia sexual para criança antes de eu saber ler, sequer. Nem que aos 16 anos de idade a última prenda que abri fossem duas caixas de preservativos que ela gentilmente depositou em cima da cama.
Eu não fiz de propósito para que os meus pais fossem os mais velhos de, no conjunto, mais 6 irmãos e irmãs, hoje tios entre os 30 e os quarenta e poucos anos, que me conseguem tratar como sobrinho e, principalmente, como amigo. Aliás, a coisa vai ao ponto do irmão que nasceu depois do meu pai ter casado com a irmã que nasceu depois da minha mãe, de maneira a que os primos tenham exactamente os mesmos sobrenomes.
E não foi de propósito.
Lembro-me, acima de tudo, daquele ditado "quem faz o que pode, a mais não é obrigado". De como, não havendo muito, nunca faltou para livros, cadernos, canetas e calculadoras. De como em todos os meus aniversários o meu pai me dava uma nota para eu pagar um sumo aos meus amigos. De como eu achava que não era preciso, e de como ele insistia.
De como ele me fez rir quando lhe contei que a minha primeira namorada tinha acabado comigo por mensagem de telemóvel, e ele disse "Oh... [pausa de admiração, dois segundos] ... ai a puta!..."
Eu não fiz de propósito, mas há coisas que não se esquecem. Eu sou uma pessoa de brancos e de pretos, e se hoje em dia consigo ver algum cinzento no mundo, foi por causa deles. Qualquer que seja, por mais pequena, a admirabilidade dalguma característica minha, a culpa não é minha.
Se tenho orgulho no que sou e no que escrevo, não é por mim. A pessoa que sou, e que quero continuar a ser, será sempre a pessoa mais perto deles possível, no sentido metafórico e literal do termo.
Eu não fiz de propósito, mas aconteceu. Não tenho culpa de os adorar. Nenhuma.
E se algum dia um filho meu puder sentir algo semelhante acerca de nós, eu olharei para a minha senhora e direi:
"valeu a pena".

3 comentários:

Tiago Queiroz disse...

Uma delícia....

Paulito disse...

E quem faz o que pode, faz o que deve :) já dizia o Miguel Torga...

SundanceKid disse...

Outros tempos, outra forma de encarar as responsabilidades, os encargos.Reconheço na história partes da minha própria história.E que saudades.Que saudades.