sábado, 6 de outubro de 2007

19 de Agosto de 2006

Bonita a forma como ele colocava a bola. Baixito, franzino, tomava balanço para marcar o penalti, com um ar tão compenetrado como se fosse o último da série de 5 que decidia o título do campeonato do mundo.
Corria, rematava e no momento em que tocava a bola voltava a ser um puto de 11 anos. Se marcasse, o que era mais que certo porque eu estava a fazer de guarda redes, em vez de festejar, sorria. Se falhasse, sorria na mesma desde que fosse eu ou o meu irmão a defender. Trocámos, porque ele, o Miguel, falhou. E enquanto eu preparo a bola sinto uma comichão no gémeo direito. Normal. Depois de marcar, o Paulo diz “opa espera aí, só mais um” e eu não percebendo bem porquê disse “não pá, vamos embora”. “oh, vê lá se morres ou o caralho!” e marcou o penalti com o puto na baliza enquanto eu arrumava as minhas coisas, e coçava a borbulha que tinha no gémeo direito. Caramba, era uma borbulha grande já...
Eles finalmente pegaram nas cenas e quando chegaram ao fundo do passadiço estava eu a limpar os pés e a calçar as sandálias, mas sem perceber onde é que estava o bicho. Se já me coçavam as duas pernas e sentia um formigueiro nos pés, o bicho ainda devia estar na minha pele, certo? 4 minutos depois da primeira comichão, partimos. A casa ficava a 200 metros da praia mas a meio do caminho tive de despir a camisola. “oh paulo, vê se tenho algum bicho nas costas” exigi eu, já nervoso por não conseguir perceber o que raio se estava a passar ou por não querer acreditar que o que poderia ser estava de facto a acontecer.
Coitado do meu irmão... estava um gajo com comichões a chatear-lhe a cabeça e a pedir que lhe visse dos bichos quando claramente nao tinha nenhum. “Foda-se, achas que eu sou cego?” Fiz os últimos 100 metros a correr. Eu sabia que quanto mais rápido o sangue passava pior era, mas sinceramente só queria chegar a casa. Entrei na casa de banho à frente da pessoa que era convidada na casa, sem pedir licença, facto pelo qual a minha mãe fez um escabeche desgraçado. “Oh mãe eu tenho mesmo de tomar agora!” disse-lhe, enquanto despia os calções de banho na casa de banho do tapete cor-de-rosa e entrava na banheira. Água quente, shampoo, gel de banho, a esfregar-me como se nao houvesse amanhã, a lavar o cabelo e a pensar “isto só pode estar no meu cabelo” e de repente o couro cabeludo começa a picar, como tinham começado a perna e depois a outra perna e depois as costas e finalmente todo o corpo até chegar lá acima. Nunca tinha feito uma reacção alérgica tão grave. É certo que eu sabia ser alérgico a pêlos, pó, pólen, àcaros e tabaco, mas que eu soubesse não tinha estado em contacto com nenhum deles, e talvez por isso não associei logo. Mas no banho tive a certeza que era isso.
E se era isso, então o banho não ía servir de nada. Saí da casa de banho tão rápido como entrei, ainda molhado, com o toalhão a tapar-me minimamente, já depois de no espelho ter reparado que estava desfigurado. A minha testa tinha líquido e este acumulava-se por cima dos olhos, a cara começava a inchar para além das pontinhas vermelhas que por essa hora eu já tinha generalizadamente e não tardaria a coisa podia alastrar. Pensei “estúpido, carlos, estúpido, ja devias ter partido para o hospital” mas consegui manter-me relativamente calmo. “Mãe, tenho borbulhas na cara” e ela que via televisão, sem de lá tirar os olhos disse “olha que admiração, ficas na praia até à noite de pois admiras-te de ter borb.... Oh Lúcia, acode aqui!” Alvoroço total. A minha mãe comandava as tropas: preparava Solu-medrol, dizia à minha tia para ir buscar Rosilan, pedia a bomba ao meu irmão, exigiu que eu me sentasse na cadeira da cozinha e que o meu pai me apertasse o braço esquerdo para me apanhar uma veia. “oh Clara, eu não gosto...” “Opá segura no braço do puto!” mas a minha tia, que já tinha ido buscar os comprimidos, segurou. Toda a operação durou no máximo 1 minuto. Quando vi ja tinha 125mg de solu-medrol na veia, mais 3 comprimidos de rosilan no bucho, a bomba para o caso dos bronquios se lixarem e mais medicamentos preparados para me manterem fixe até ao hospital, caso fosse preciso lá ir. “Não lhe fazem lá mais do que eu lhe fiz, pah” diz a minha mãe meio que falando sozinha, tentando perceber se haveria mais alguma coisa a fazer; “respiras bem?”; “sentes o pescoço inchado?” Sim, não. A questão é que eu não tinha noção da minha cara, e era por isso que ela estava assustada. Para além da testa, desta vez toda a cara estava como ela. As bochechas doíam como quando as puxam e os labios estavam do tamanho que costumam ficar quando têm um grande herpes. Mas um daqueles generalizado...
A mãe explicou que era da dilatação dos vasos e que era água acho eu, acho que foi isso que ela disse. Só tenho a certeza que o meu irmão e os meus primos não se mexiam, o meu pai estava atento e preparado para pegar no carro, o meu tio a olhar para mim muito sério, a minha tia de lágrimas nos olhos e a minha mãe com um olhar de lince, a ver o inchaço, as borbulhas, as doses, e eu com um toalhão já mal enrolado, nu, na cadeira da cozinha, toalhão que depois foi substituído por um pano de cozinha, para a minha mãe ver as pernas.
Passou.
Eram 20:50 e quem olhasse para mim via-me descansar na cama e não pensaria no que tinha acontecido. Embora só tenha desaparecido 24 horas depois, o inchaço diminuiu muito logo aí. O Nelson, a visita, estava a tentar distrair os putos. A minha mãe foi à casa de banho 4 vezes seguidas. A minha tia chorava do susto, mas longe de mim e deles. A diana veio dar um beijinho porque la deve ter achado que eu merecia depois daquilo. É uma riqueza! E eu confesso que chorei também porque tive medo. 2 lágrimas que eu tratei logo de limpar. Devia estar contente por estar tudo bem, não é?
Não vou fazer desta história um drama, porque não o foi. Nem que eu tivesse morrido seria, pelo menos para mim. Era só uma questao de não haver solu-medrol em casa, da minha mãe não ser enfermeira, de eu ter demorado mais uns minutos, de ter começado por asfixiar em vez de começar pelas borbulhas... se alguma coisa destas falhasse, talvez não chegasse ao hospital a tempo.
Mas este episódio ajudou-me a entender que o tempo é relativo. Que 20 minutos podem ser fatais, e que às vezes um ano é pouco. Que num segundo se fica incapacitado e se estraga um futuro que duraria 50 ou 60 anos. Entendi que não tinham ficado nenhuns danos em mim, para além dos efeitos secundários normais da cortisona, que são fortes. Agradeci ao acaso não estar relegado a nada definitivo, naquele momento.
Apesar de ser impulsivo quando se trata de defender os meus valores, as minhas pessoas queridas ou adjudicar o meu sentido de justiça, aprendi a ser paciente nas coisas realmente importantes. Aprendi que podemos andar 1000 anos na merda e num momento mudar tudo, ou ao contrário. Aprendi que todas as pessoas merecem uma segunda oportunidade como a que eu tive, caso queiram tê-la, e caso a mereçam. As pessoas merecem uma segunda oportunidade caso a mereçam. E como é que nós sabemos se a merecem? We just do, don’t we?
Aprendi a não fazer grandes dramas: o mundo é afectado por nós, sim, mas numa escala que vai ser sempre pequena não importa o quanto nos esforcemos. Aprendi que os sentimentos andam num círculo, e que o diâmetro desse circulo começa na indiferença e no respeito, lado a lado, e acaba no amor e no ódio, lado a lado.
Aprendi a querer aprender com a vida, não numa perspectiva do género “vou lutar para ser melhor nisto ou naquilo, para conseguir isto e aquilo, ou aquela pessoa” para um “vou lutar para ser feliz, para ser melhor pessoa, para ter força para dar segundas oportunidades, caso se mereça, para perdoar mesmo que magoado, para aceitar o que não posso mudar, mas para tentar mudar sempre o que possa”. Só há duas pessoas que odeio no mundo, e o que quero delas é distância. Ainda luto para não desejar-lhes mal, mas de vez em quando não consigo. Mas não, não é mais forte do que eu. É uma experiência bipolar. Se há momentos em que as odeio quando penso nelas, logo a seguir as respeito e as ignoro, tal como merecem. Se olho por olho, dente por dente, então todo o mundo fica cego, certo?
Quem mente, esconde, engana, se vinga, quem faz mal às outras pessoas por puro egoísmo, quem age de forma incoerente, ao sabor dos seus desejos e caprichos, quem não é capaz de se sacrificar por alguém, um dia, eu acredito, vai ter a recompensa disso.
E não sou eu ou alguma pessoa que lha dará, é a vida.
Como me deu a mim, no dia 19 de agosto de 2006, em Altura, no Algarve.

1 comentário:

Miguel disse...

Espectacular!! Oh pá não sabia que escrevias tão bem!!!Já pensaste em ser escritor, olha que hoje em dia não está nada fácil arranjar emprego na zona da gestão...Ah e só mais um pormenor...As pessoas que lerem este texto vão ficar a pensar que eu sou um coxo, podias ao menos dizer que o penalti foi à trave!! LOL xD

by: Miguel