segunda-feira, 26 de outubro de 2009

400 e 1

Não posso ter um cão.

- Tu tens um cão, não tens?
O meu querido amigo olhou para mim com um ar ambíguo, numa mistura de estranheza, admiração e melancolia.
"Como é que sabes?"
- Porque sinto.
Esfreguei o nariz e senti-me observado.
- Mas não é nada de especial, são só as minhas alergias.
Fiz questão de esclarecer que se tratava de uma reacção puramente física, não fosse o rapaz pensar que eu sentia espíritos ou coisa que o valha.
"O meu cão morreu há um ano e tal."
Olhei para ele,
- Já?
"Já. E o carro foi limpo muitas vezes depois disso"
Eu não duvidei.
Preparei-me para o discurso que tenho de fazer sempre. Que o problema não é dos locais ou das pessoas, que é meu. Eu é que tenho uma espécie de ultra-sensibilidade à presença de animais com pêlo - cães, gatos, hamsters, seja o que for.
Que era óbvio que o carro estava bem limpo, e que de certeza só eu é que ía notar aquela "presença". Não me lembro se lhe contei das várias vezes em que chego a uma casa nova e afirmo que "está um animal na sala", contrariando os donos, que pensam que o gato está lá em cima, ou que não, não o vêem em lado nenhum, até que o bicho sai debaixo de um sofá e sou olhado com o tal olhar ambíguo de quem "nega à partida uma ciência que desconhece".
Não, não sou bruxo. Sou "só" alérgico.
Sempre invejei quem os tinha: imaginava-me a contar-lhe aquilo que eu sabia não poder ser revelado; a retribuir-me com justiça o que lhe fizesse; a esquecer-se facilmente do que devia ser esquecido, a lembrar-se facilmente do que importa, e que é exclusivamente meu; do silêncio que faria no meu silêncio, ou das vezes sem conta que buscaria qualquer bola que eu atirasse, como quem diz que me ama em cada uma delas, quando me apetecesse brincar; de aprender com um ser que não fala, mas responde (no seguimento do que tenho escrito por aqui). Invejo a ausência de julgamento por detrás do desabafo, a aceitação de quando não o queremos por perto, a perda de memória (ele esquece-se ou faz que se esquece?) que ele tem sempre que sabe que perdemos oportunidades para o afagarmos.
A personalidade.
O aprender connosco, e sobre nós, sem repetições ou mal-entendidos.
A personalidade que uma folha de papel nunca terá. Tem a nossa, não a sua. Não a própria. Não a bela, a supracitada.
Existem neste espaço tantas folhas que deixaram de ser brancas porque houve um cão que nunca existiu.